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CESAR .
2018-05-28T00:00:00
Pessoas
O futuro já está aqui!
Por Onicio Leal
O casamento entre ciência e empreendedorismo é a ponte que une o conhecimento científico produzido nos centros de pesquisas e as necessidades reais da sociedade.
Na minha infância, em Caruaru, eu passava todas as tardes no comércio dos meus pais observando o dia a dia e os desafios de tocar uma empresa. Essa exposição desde muito cedo gerou em mim um efeito contrário ao que se espera de quem convive com empreendedores. No final do colégio, eu tinha dúvidas se queria tocar os negócios da minha família ou se iria me afastar drasticamente do empreendedorismo. E foi isso que eu fiz naquele momento, me afastei. Escolhi o curso de biomedicina sem sequer ter ideia do que eu poderia fazer, já que nenhum familiar ou amigo próximo vivia na realidade de análises clínicas, tubos de ensaio, sangue e outros artefatos que compõem qualquer cenário do laboratório de Dexter. Até a metade da faculdade, nada daquilo tinha a ver comigo. Eu não me identificava com o curso de biomedicina até iniciar uma disciplina que me levou para o universo das doenças infecciosas — foi a salvação para os anos investidos num curso que estava prestes a se perder. No final da graduação, eu estava decidido a começar uma longa jornada nos serviços do governo mirando o cargo de pesquisador em algum centro de pesquisas do Brasil e buscando a tão almejada estabilidade dos concursos públicos. Me mudei para Recife para cursar a residência em saúde coletiva na Fundação Oswaldo Cruz e lá conheci meu sócio, o Jones Albuquerque. Começamos a trabalhar juntos em um grupo de pesquisas desenvolvendo tecnologias móveis para a realização de inquéritos epidemiológicos, até que publicamos, em março de 2011, um artigo na Scientific American Brasil sobre a primeira vez que smartphones seriam utilizados para combater endemias no país. Nosso objetivo era criar ferramentas resolutivas para esses problemas. E foi a partir deste projeto que passamos a receber uma demanda de pesquisadores, secretarias de saúde e outras frentes que vinham buscar informações e soluções. A pressão pra gente começar a empreender se deu nesta relação entre o que estávamos fazendo e a necessidade real. Naquela época, eu dividia o início da minha carreira acadêmica com o trabalho no serviço público. Eu tinha sido convidado para fundar o Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde do Recife (CIEVS Recife), que funcionava como um Serviço de Inteligência Epidemiológica monitorando os riscos de surtos e epidemias na cidade através de mineração de dados em redes sociais. Na preparação para a Copa das Confederações, fui convidado a integrar o CIEVS Pernambuco e depois a atuar como consultor da Organização Pan-Americana de Saúde, apoiando o Ministério da Saúde na implementação de estratégias de detecção digital de doenças. Neste meio tempo, percebi que se quiséssemos acelerar a inovação em saúde não poderíamos depender do setor público, então fundamos a Epitrack, e eu saí do trabalho no governo.
Concluí o meu mestrado em Saúde Pública e comecei o doutorado antes de iniciar o primeiro grande projeto da Epitrack, que nos colocaria no hall das plataformas de detecção digital de doenças no mundo. Desenvolvemos o Saúde na Copa, uma plataforma para identificação de epidemias durante o mundial de futebol no Brasil que foi utilizada oficialmente pelo Ministério da Saúde. Demos para o usuário o meio de detecção tornando ele próprio fonte primária de informação, e criamos estratégias para engajá-los de maneira mais periódica e recorrente para coletarmos informações em tempo real. Com isso, antecipamos as informações que antes os agentes de saúde levantavam manualmente em enquetes epidemiológicas, repassando informações que ainda atravessariam várias etapas manuais até serem contabilizadas como oficial. Descentralizar a coleta de dados do governo, dando ao cidadão a chance de participar na construção dos cenários de saúde, melhora a qualidade das informações para o setor público. Com este case, nos tornamos referência e fomos convidados a desenvolver trabalhos para Ebola, Influenza, Arboviroses, dentre outros. Essas experiências consolidaram a Epitrack: mais de 170 mil usuários já foram impactados pela nossa tecnologia no Brasil, EUA, Canadá e Porto Rico.
No começo deste ano, lançamos um novo produto para a área da Saúde, uma espécie de Uber das consultas médicas, o Clinio. Consultas e quadros de baixa complexidade representam mais de 90% das emergências nos hospitais do Brasil. Com o Clinio, você localiza um médico, ele te atende em casa (por enquanto, médicos generalistas) e libera o sistema de saúde para as urgências de fato, garantindo melhor atendimento tanto nos hospitais como nas consultas individuais em domicílio.
Escolhas certas e propósito
Viver da ciência no Brasil é desafiador. Quando você mistura isso com empreendedorismo, o cenário fica ainda mais hostil. Empreender é um mar de dificuldades a todo instante, uma montanha russa. A quantidade de coisas que dá errado é muito maior do que a que dá certo e aparece. Pelas experiências que vivi como empreendedor, destaco duas categorias de dificuldade que precisam ser levadas em conta por qualquer pessoa que quer empreender. A primeira é saber escolher o contador, o sócio e o mentor. Costumo dizer que fiz três cursos muitos caros: justamente o curso de como escolher o contador, o sócio e o mentor. Os caminhos mais fáceis mostram lá na frente problemas que custarão mais caro à empresa. A segunda categoria de dificuldade é lidar com o conservadorismo e a tradicionalidade que atrapalham a evolução. No caso da área de saúde, é preciso adaptar nossa linguagem para dialogar com médicos, enfermeiros, gestores, para que compreendam a inovação como ajuda que reflete no “ecossistema” da saúde como um todo.
Lidar com inovação de ruptura do modelo implementado será sempre desafiador, porque a inovação gera muita incerteza. Todas as tecnologias exponenciais passaram por essa dificuldade no início, lidando com componentes como incredulidade, decepção. Mas entendemos que assim como as tecnologias que hoje são realidade também passaram por este processo, novos produtos como o Clinio terão ainda um início mais lento até serem assimilados como nova cultura.
O casamento entre ciência e empreendedorismo é a ponte que une o conhecimento científico produzido nos centros de pesquisas e as necessidades reais da sociedade. E é isso que faço como empreendedor e cientista. O futuro já está aqui, a transformação já aconteceu. Cabe a nós traçarmos a continuidade deste futuro que chegou, mas está mal distribuído. Cabe a nós sermos “evangelizadores” em inovação para a saúde. Continuo achando que estamos no caminho certo com a Epitrack, embora tenhamos apanhado muito. Para cada sim, ouvimos dezenas de nãos, mas nosso propósito fala mais alto.